#PARA QUE SERVE O GRAAL?
“O segredo é não correr atrás das borboletas... É cuidar do jardim para que elas venham até você.” Mário Quintana
I
Negócio fechado. Diogo comprou o apartamento luxuoso que projetou e eu comprei minha chácara que segue em reforma para adaptar-se aos meus muitos plugs e tomadas dos aparelhos que vou instalar. Encanamentos novos, banheiro sob controle, linha telefônica, alarme, câmera de segurança, internet, TV a cabo, coisas simples que uma criatura urbana mesmo em seu habitat mais natural tanto precisa. Enfim, uma obra grande com direito a repaginação da fachada, paisagismo e toda decoração da casa. Diogo, que projetou a obra, me deu todo tempo que precisar para ficar, mas não quero. Ele deve mudar-se em alguns dias e eu preciso correr com a obra para que não nos agridamos muito. Quero ser seu amigo e preciso encaixotar toda a minha vida. Fotos, livros, discos, lembranças... Tudo para recomeçar em outro lugar. No fim eu percebo que era dessa chacoalhada da vida que eu precisava.
II
Sonhei com Pégaso, o grande corcel alado nascido do sangue de Medusa. Ele que combateu monstros marinhos e voava por todo o céu, trazia meu anjo em sua sela. Ele estava feliz, carregando uma coroa de louros.
III
Em poucos dias meu livro será lançado. Não queria estardalhaço nenhum, mas Roberto, tão sedutor, fez questão de pelo menos um lançamento com noite de autógrafos. Sabia das entrevistas, fotos e de todos os compromissos, mas deixei por sua conta. Só pedi exclusividade nos dias que voluntario no orfanato. Tenho levado muito mais que material e trazido tanto de cada criança, tanto sonho, tanta esperança. Uma parte da venda do livro eu quero doar para construir nossa biblioteca. É pouco, eu sei. Mas é o que eu posso fazer para salvar o mundo, além de reciclar o lixo e economizar água. Não custa nada. Cada um tem uma missão a cumprir aqui. Espero que a minha não seja juntar tralha. Já são 17 caixas e falta muita coisa.
IV
A obra da chácara está bem adiantada, assim como minha mudança, tudo na finalização. Sem minhas coisas e com as caixas do Diogo chegando sinto-me cada vez mais estranho nesse lugar que um dia me pertenceu. Diogo quer que Maria continue trabalhando aqui, mas ofereci uma vaga para ela também na roça deixando que ela decidisse. Meu cabelo começa a crescer e essa história parece que caminha para o seu final, bem bucólico, por sinal. Mas não esqueço nunca do Destino.
V
O lançamento do livro foi bacana. Superou minhas expectativas, tanta gente. Estavam todos presentes: Diogo, Caio, Klaus, Kaká, todos vilões dessa história e mocinhos talvez. Tiveram que aplaudir meu sucesso. Essa foi a minha vingança. A melhor. Apesar de tantos compromissos a noite foi agradável. Todos estavam de certa forma, tensos, e culpados e morrendo de medo de serem personagens do romance. Aquela foi minha glória. Roberto estava sedutor demais e me ajudou o tempo todo. Nunca tinha percebido que ele era um fofo. Mas quase no fim da noite, o bofe que me ajuda na sopa da madrugada apareceu. Lindo, simpático e meu fã. Quis dedicatória como tinha nos dois anteriores. Seu nome era Fernando. Gostei que ele apareceu e olha que eu nem convidei. Ele deve ter visto no jornal e ficou tomando um champanhe comigo enquanto os outros se olhavam sem entender nada. Nem eu. Bebi pouco, tirei muita foto, escrevi demais e ainda terminei a noite feliz. Realizado.
VI
Na última sessão de desobsessão o tema escolhido pela palestra foi o amor, aquele que Jesus prega e que é o único capaz de trazer a verdadeira felicidade, o amor universal. O mundo só vai melhorar com esse amor e quando nós quisermos encontrar as saídas de emergência que nos levam aos lugares seguros. Os problemas sempre existirão, mas não são eternos. Chorar à toa não adianta nada, estressar-se por coisas bobas é estupidez e sofrer não leva a lugar nenhum, só aos planos inferiores. Tem que estar de coração aberto para expressar e receber o amor desprendido de egoísmo e arrogância. E só a consciência da nossa imperfeição já é uma melhora. É preciso amar. Sempre.
VII
As primeiras críticas do livro têm sido boas. Não que isso interesse nessa altura do campeonato. Sou escritor e pronto. Faltava-me luz e vontade diziam os críticos, que hoje, dizem que eu renasci das cinzas. Esse sou eu. Definitivo.
VIII
Sabendo ou não que era minha última noite no apartamento, o vizinho me deu um show de alaúde. Estava emocionado. O som que tanto me irritou chega já a dar saudade. E olhando para o céu, no último cigarro na sacada antes de dormir, eu vejo uma estrela cadente.
IX
Os caras da mudança chegaram e começaram a levar os móveis e caixas. Acredito que seja essa o último post que escrevo desse apartamento maravilhoso. Apesar dos últimos anos incríveis que vivi aqui não guardo grandes lembranças e não quero sofrer mais do que já sofro. Abandono aqui toda culpa cristã e todo peso que carrego parto para uma vida nova com bem menos bens. O vazio, que as minhas coisas deixaram nesse lugar, agora, preenchem o vazio, que eu não sinto mais agora. Liberto-me e parto para o novo.
X
SONHETO I
No princípio, eu era apenas a primeira pessoa.
Depois veio a segunda e a partir daí vieram às outras tantas.
Subverteram posições e lugares,
Complicando ainda mais a minha vida desregrada.
Fiz-me verbo, substantivo e adjetivo.
Não me tornei artigo por mero prazer.
Sou a primeira pessoa de tantas outras conjugadas pela culpa.
Cometi erros graves de sintaxe.
Assassinei minha língua por algum dinheiro.
Hoje corrijo todos os meus erros com uma caneta vermelha
Tingindo minha existência lírica com borrões denunciando a minha média sempre baixa.
Perdi-me na morfologia dos corpos.
Vivi três heterônimos para encontrar-me de novo na primeira pessoa.
Sozinho.
Sou a primeira pessoa: amei, sofri, morri, mas sobrevivi.
A você, a ele, a eles.
Eu sou apenas eu agora
Tornei-me intransitivo.
Eu me entendi.
XI
Enquanto os caras carregavam as caixas, Lucky deve ter fugido. Desesperei-me e fui atrás dele. Os portões estavam abertos para a mudança e imaginei que ele tivesse ido para a pracinha que ele conhecia o caminho de cor. Rodei a tal da pracinha e sai de carro pelo bairro, atordoado Onde estava meu bebê? Meia hora depois nada eu resolvi voltar e ver se ele tinha voltado pro prédio. Nada. Pensei em fazer cartazes com a foto dele e espalhar pela região. O porteiro não viu nada, como sempre. Subi para imprimir a foto dele no computador e tinha um bilhete na Minha porta: SEU CACHORRO APARECEU AQUI EM CASA. LEVEI MAS NÃO TINHA NINGUÉM. ESTÁ COMIGO. VIZINHO DO 31. O maldito cara do alaúde.
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