quarta-feira

# DEZ


#TRILHANDO OS PASSOS

“Não existem garantias. Sob a perspectiva do medo, nada é suficientemente seguro. Sob a perspectiva do amor, nada é necessário.” Emmanuel


I
Ainda com um pouco de ódio e raiva no coração e um tanto de desconfiança, eu sentei-me naquele salão para assistir a tal palestra. Ficou escuro, acenderam luzes azuis e ligaram Bach. Achei que os espíritos começariam a manifestar-se nessa hora, mas tratava-se apenas da oração inicial. A casa era bem simples e eu esperava, ao menos, ouvir história de fantasmas e assombrações. Só falaram de Jesus, não gosto de igrejas, mas simpatizo com o cara e o via como um transgressor. Falaram de sofrimento e da nossa escolha em bem sofrer ou mal sofrer. Gostei disso. A revolta e a vingança não são maiores que o amor e a caridade. Sofrer é o passo que vem antes da recuperação. O passo seguinte seria o perdão sincero. A vingança que eu tanto queria era o pior caminho para a minha evolução. Pensei no perdão e novamente pensei em Jesus. Não naquele da cruz, mas brincando como no poema do Pessoa. Veio a prece e o passe. Eu só agradeci.
II

Cheguei em casa centrado por mais óbvia que a palavra possa perceber. Mas meu vizinho, como sempre, estava tirando um sarro da minha cara. Ele não tem noção nenhuma de estacionamento, entrou uns cinco centímetros na minha vaga. Parece nada, mas cinco centímetros é muito para quem não sabe estacionar, como eu. Mas não existe nada mais pobre que brigar por vaga Todo imbuído das boas energias que me acompanhavam então escrevi um bilhete bem educado pedindo que ele estacionasse direito e deixei a mensagem impressa do centro no pára brisas. Aproximando-me do carro eis que tenho a maior das surpresas, reluzindo diante dos meus olhos e repousando no banco de trás: o instrumento misterioso. Um alaúde. Tirei o bilhete e deixei apenas a mensagem.


III

O alaúde, se eu me recordo, é um instrumento medieval. Algo que eu jurava ser peça de museu, mas ele estava ali, no meu prédio. Descobri que era um símbolo da pureza e da fidelidade dos amantes trovadores. Eu nunca vi a cara desse cara, mas eu tenho um vizinho que toca alaúde.


IV

A casa estava de pernas pro ar. Em pouco mais de uma hora, Lucky conseguiu destruir três almofadas e espalhar todo seu recheio pela sala. Lucky quer passear. Vem Lucky, vamos. Eu também preciso dar uma volta a pé.


V

Estou fazendo um tratamento de desobsessão no centro. Cinco semanas. Retirar os encostos, pesos e tudo mais que atrapalha minha vida. Encontrar o caminho de volta através da caridade, tão citada. Doei tudo que tinha de roupa. Só fiquei com o necessário e mesmo assim sobrou bastante. Guardei os livros essenciais. Doei para várias bibliotecas, espalhei revistas pelos pontos de ônibus, fazendo tudo rodar. Estava pronto para viver em um trailer, mas ainda havia algo a fazer, além de aumentar o salário da Maria. Queria vender logo aquele apartamento e comprar minha casa.  Lucky pedia insistentemente, comendo pedaços da parede da sala.

VI

Que fique bem claro. O apartamento sempre foi meu. Diogo, arquiteto renomado, é que deixou o espaço assim tão cool e elegante. Antes que os fofoqueiros ou advogados de plantão venham contestar qualquer direito eu reafirmo: sempre foi meu. Eu reformei, forrei de mármore preto o meu banheiro porque o Diogo insistiu, era o must have. Diogo só investiu na mobília. Cafona, por sinal. A grande parte eu destruí em acessos de fúria, a outra parte a Maria levou e os restos são a diversão do Lucky. Por favor, comprem meu apartamento logo!


VII

O centro serve uma sopa para os moradores de rua três vezes por semana. Vivem pedindo voluntários. Numa dessas insônias eu acabei passando uma madrugada descascando batatas e ralando cenouras. Juro que esqueci toda aflição que sentia, aquele vazio. A turma era bem eclética, mas os idosos eram a maioria e me emocionavam mais ainda. Aquela doação sem nada em troca. Só para encher a barriga de mendigos e viciados. Na hora da distribuição me puseram com um rapaz para entregar as sopas. Ele era lindo, cara de bonzinho, um fofo. Fiquei pensando no pecado que estava cometendo ir ajudar para caçar. Ele me parecia conhecido, sua cara não era estranha. Formamos um bom time e 120 refeições depois devoramos nossa sopa. Afinal, caridade precisa de força para ser praticada dia a dia.


VIII

Raspei os cabelos. Deu na louca e eu ataquei fio a fio com a máquina. Tive que fazer metade e esperar a máquina carregar para terminar, coisas que só acontecem comigo. Queria libertar-me. Lucky solta pelo pela casa toda e eu eliminei todos os meus. Cansei da cabeleira solta ao vento. Posso ver a cor real do meu cabelo. Não gosto, mas seguirei assim. Para as culturas orientais raspar o cabelo é um sinal de humildade. Quero ser mais humilde e gastar menos com produtos capilares fantásticos. Estranhei um pouco o visual, mas me acostuma, é como a dor. Essa é a onda do momento. Se eu abrisse o tarô saberia exatamente quais cartas sairiam.

IX

Tenho estudo o espiritismo. Algo que me fascina, mas não percam o tempo achando que essa história terá um final surpreendente que envolva reencarnações e vidas passadas. Bem longe, disso. Quero só o presente como um presente da vida. Entendo melhor todas as dificuldades e sofrimento que passei, mas foram essenciais para minha regeneração. Entendi o que era humanidade e posso fazer algo pelo próximo necessitado. Antes parecia ser eu versus o Mundo, hoje sou eu a favor do Mundo. Vou na direção do meu Anjo. Eu tinha um nível de exigência absurda para comigo mesmo e às vezes uma folha que caia do lado errado era a causa do meu dia virar um só tormento. Tenho talento sim e com ele vou longe. Mas tudo ao seu tempo.


X

Tenho visitado casas em condomínios, mas não encontro nada que me agrada. Ou o condomínio parece um cortiço de rico de tão colorido ou não parece nada já que todas as casas são iguais. Por mim e por Lucky preciso urgente de uma casa. Até porque logo eu vendo meu apê e vão me despejar.


XI

Roberto me ligou. A editora vai publicar meu novo romance, o terceiro. Ele gostou muito, estava entusiasmado, feliz. Aquela energia contagiou meu dia. De hoje em diante só quero boas notícias, como essa. E preciso urgente de um título final. E me reconciliar com o passado, se não for pedir muito.

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